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A Espiritualidade do Concílio

Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 4-9-76

ANTES DE QUALQUER consideração sobre o que aconteceu ontem em Lille ou amanhã acontecerá em Roma ou Paris, é indispensável a recolocação dos eixos principais do affaire Lefebvre: em todos os textos esse dramático desenlace de um amontoado de equívocos e erros é apresentado como uma recusa da parte de Dom Lefebvre. Esse virtuoso prelado é apontado como rebelde, isto é, como alguém que, por iniciativa própria e primeira, recusa obediência a um superior hierárquico.

ESSA APRESENTAÇÃO mal feita em quase todas as notícias, explica-se por mil fatores sobejamente conhecidos, mas forçoso é reconhecer que, pela primeira vez nos dez anos de “Igreja Pós-conciliar”, corre pelo mundo inteiro uma emoção e um interesse surpreendentes. Como?! Este bravo mundo ainda se interessa pela Religião e especialmente pela Religião Católica?! Infelizmente esse interesse e essa emoção, mesmo no meio dos católicos praticantes, se perdem num ambiente em que as referências doutrinais foram destruídas e espezinhadas. Daí a necessidade de recolocação cuidadosa do problema em seus verdadeiros termos. Não há no caso uma simples recusa, e sim uma recusa provocada por outra recusa mais grave, que não foi promovida por Dom Lefebvre, e sim por toda uma organização eclesiástica, reunida em concílio, e continuada com sínodos, Conferências Episcopais, com o objetivo, tornado hoje evidente, de recusar a continuação tradicional, obediente, da Igreja de Pio XII, Pio XI, Bento XIV, São Pio X… São Pedro, Nosso Senhor Jesus Cristo. Hoje, só não vê que as famosas reformas conciliares produziram não apenas uma Igreja reformada, deformada, transformada, mas Outra igreja, quem não quer ver, ou quem muito pouco conhecia da Face e da Voz da Esposa de Cristo. Todos nós, para quem esta tenebrosa evidência crescia irresistivelmente, e se impunha como um dever de testemunho, rogávamos a Deus instantemente, gemendo e chorando, que o Sumo Pontífice, Vigário de Cristo, guardasse paternal dileção pelos seus filhos católicos, ainda que por debilidade de temperamento, que o Cardeal Gut chamou de “sua grande bondade”, não tivesse forças para reprimir os mil agravos cometidos no mundo inteiro contra o Sangue de Nosso Salvador; ainda que lhe faltassem forças, e que disto tanto sofresse, para castigar um Hans Kung, e os desvarios de tantos cardeais indignos, relapsos, que Santa Catarina de Sena não hesitou chamar “demônios incarnados”, ainda assim rogávamos a Deus, à Virgem Santíssima, a São Miguel Arcanjo, a São José, a São Pio V, a São Pio X que protegesse nosso Papa Paulo VI e que de todos os modos o defendessem da tentação de ser Papa conciliador de duas Igrejas inconciliáveis. Chegamos à humilhação de pedir, de esperar que, caso tal coisa acontecesse, não chegasse à extremidade de romper os vínculos de paternidade com aqueles que só desejam viver, se santificar, e morrer na mesma Igreja em que receberam o batismo.

AFLITOS, NÃO COMPREENDÍAMOS como podia o coração católico do Santo Padre não recusar os evidentes resultados da vitória obtida pelos inimigos da Igreja. Nós os recusamos. Dom Lefebvre, antes de nós, desde o Concílio, deu todos os sinais de alerta e de santa repugnância. Ele via, como hoje vemos claramente, que a tradição, a artéria viva que nos traz o Sangue de Cristo e todos os bens da Igreja, os sacramentos, a autoridade dos Bispos e a suprema autoridade do sucessor de Pedro, estava sendo cortada. E por isto nós recusamos aquela nova Igreja, que recusava a tradição.

AGORA, NUM RETROSPECTO trazido pela atoarda do affaire Lefebvre, impôs-se à nossa atenção o pronunciamento principal com que se encerrou o Concílio, e com o qual ficou ostensiva a ruptura do resultado conciliar anunciado, com a doutrina, com a identidade, com a tradição católica. No tópico 8 da alocução de encerramento do Concílio, de 7 de dezembro de 1965, lemos: “A religião de Deus que se fez homem, se encontrou com a religião, sim a religião, do homem que se fez Deus” é a religião do orgulho e choque, uma luta, uma condenação? Poderia ter acontecido, mas não foi o que aconteceu. A antiga história do Samaritano foi a pauta da espiritualidade do Concílio. Uma simpatia imensa o penetrou”. (grifo nosso)

DETENHAMO-NOS na consideração da “espiritualidade” do Concílio, e consideremos que ela se opõe frontalmente à espiritualidade católica em qualquer dos seus riquíssimos matizes.

NA ESPIRITUALIDADE CATÓLICA, ensinada por São João da Cruz, Santo Tomás, Santa Catarina de Sena, Santa Tereza d’Avila, Santa Terezinha do Menino Jesus, São Francisco de Salles, Santo lgnácio de Loyola, São Domingos, e Santo Agostinho — “a religião do homem que se faz Deus” é a religião do orgulho e seu espírito só pode ser o das Trevas. Será possível admitir qualquer coalizão entre as duas Igrejas? O redator da passagem acima transcrita, levado pela idéia mestra do humanismo que tudo quer conciliar, deixou-se levar pela idéia de que a Igreja — estando aqui para servir —deve ser essencialmente tolerante.

MEU DEUS! NÃO PRETENDO ensinar o padre-nosso ao Vigário, mas também não quero e não posso deixar passar em silêncio uma tão grave oportunidade de mais obedecer a Deus do que aos homens. É elementar doutrina da aclesiologia católica que a Santa Igreja do Verbo Incarnado, na sua virgindade maternal, configurada pela Mãe de Deus, é solícita e misericordiosa para todas as fraquezas dos homens, mas é virginalmente, adamantinamente intolerante com a força má de seu orgulho.

A IGREJA DO VERBO INCARNADO, em todos os tempos, soube consolar os homens que se humilham, e soube com energia incansável reprimir, condenar, castigar os que ousam se erguer contra a Majestade de Deus.

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