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A necessidade de explicar tudo

A necessidade de explicar tudo

Gustavo Corção

Nas primeiras linhas da entrevista ao Figaro, por Dom Marcel Lefebvre, publicada quinta-feira última nestas colunas, lemos aflitos que Dom Lefebvre acha necessário explicar que a Igreja de Cristo é uma realidade sobrenatural, uma sociedade mística. Porque me afligi? Por ver que no meio do tormentoso processo criado em torno do Bispo que só deseja continuar o que sempre fez na Igreja, o entrevistado tem de começar pelos mais elementares ensinamentos de catecismo. Pensei em Machado de Assis – cuja crítica do Primo Basílio se agigantava num planisfério de mediocridade – a exclamar com indiscreta impaciência: «Arre! é preciso explicar tudo!»

O torturado bispo francês, sem nenhum sinal de impaciência, também tem necessidade de explicar tudo. A quem? Ao povo da fille ainé de l’Eglise ou àqueles mesmos que o acusam de desobediência e de indisciplina cismática?

A verdade é que, em todo o alarido e mesmo nas declarações mais ou menos oficiais que a insólita suspensão a divinis provocou, o termo Igreja, por uma brutal sinédoque, designa a parte visível da Igreja terrestre, e essa mesma despojada de seu belo título tridentino de Igreja Militante. Parece que todo o mundo hoje sabe o que é suspensão, sabe até de ciência recente o que quer dizer a divinis, mas pouquíssima gente católica sabe o que quer dizer Igreja. Daí a trágica, a apavorante necessidade de explicar tudo a começar pelo: «És cristão? – Sim, pela graça de Deus sou cristão».

Aqui intercalo uma lembrança pessoal recente e não menos dolorosa. Conversando com um amigo religioso que bondosamente defendia um eminente prelado, atalhei com impaciência: – Mas meu caro, ele não sabe rudimentos de catecismo! Meu amigo riu-se, para não chorar, e gemeu: – Você já encontrou muitos bispos ou arcebispos que conheçam rudimentos de catecismo?

Caberia aqui, depois desse melancólico desabafo, abrir uma larga digressão sobre o conteúdo do Concílio e principalmente sobre a direção geral que lhe imprimiram.

Mas voltemos à mutilação do conceito de Igreja, que está explícita ou implícita em tudo o que se imprime em torno da insólita suspensão de um dos raros bispos católicos (descontado o amargo exagero de meu amigo) que sabe com especial e amorosa penetração o que é Igreja.

E já que a oportunidade se oferece, esbocemos nós um resumo da doutrina que restitui à Esposa de Cristo todas as suas dimensões místicas.

Instituída em sua estrutura hierárquica por Nosso Senhor, sobre a pedra de Pedro, e depois nascida do lado aberto de Jesus adormecido na Cruz, a Igreja na terra começa sua peregrinação entre as aflições dos homens e as consolações de Deus. E à medida que se salvam as almas que voltam guiadas por Jesus à casa do Pai, cresce a Igreja do Céu que, dentro da comunhão dos santos, mantém duas relações vitais com a Igreja na terra; uma vertical que traz aos vivos deste mundo envelhecido e atormentado a ajuda e o exemplo dos supervivos que já ouviram dizer: «Eis que faço tudo novo» (Ap.21) e já receberam a palma da vitória; a outra relação é a linha horizontal do encontro marcado em que Jesus volta para julgar os vivos e mortos.

O primeiro esquecimento e a conseqüente mutilação praticada no Concílio foi a do caráter Militante da Igreja da terra, sempre em guerra com seus cruéis inimigos, desde os ensinamentos de Jesus e especialmente de São Paulo Apóstolo até o Concílio de Trento. A tentativa vã e ímpia de transformar a Igreja Militante numa Igreja alargada, conciliatória, pacificadora, tolerante é oficialmente proclamada no discurso de encerramento do Concílio, e cada dia lembrada e posta em prática na Igreja pós-conciliar. No Brasil, entre milhares de exemplos temos o recente festival maçônico em Salvador, e o lirismo marxista do Bispo Dom Pedro Casaldáliga. Eis aí um dos frutos da chamada Igreja pós-conciliar.

Se a Igreja católica se reduz à Igreja da Terra desligada dos compromissos tradicionais, isto é, da custódia do depósito sagrado e da salvação das almas; se se admite o conúbio da Religião de Um Deus que se fez homem com uma religião do homem que se fez Deus, então entende-se que o Chefe Supremo dessa organização tenha autoridade humana e poder de exigir que Dom Lefebvre, para permanecer ligado a essa instituição, ao seu regimento, deva aceitar todas as reformas do Concílio sem nenhuma veleidade de apelo para instância mais alta.

Se porém ainda cremos que a Igreja Católica, na Terra e no Céu, é anterior e superior às novidades trazidas para acomodar a Igreja da terra à mentalidade contemporânea, então é forçoso convir que seria mais razoável que a hierarquia que agora governa a Igreja da terra mais se empenhasse em buscar na Igreja do Céu sinais de agrado e de apoio das reformas conciliares, do que buscar na própria terra, no próprio mundo neutro ou inimigo, os critérios para julgar o valor de tais frutos.

Tantos são os sinais mais ou menos graves da ruptura da tradição, que sem hesitação podemos dizer – com o que aprendemos no regaço da Igreja onde queremos viver e morrer – que o rumoroso caso de Dom Lefebvre ultrapassa de muito a dimensão de uma questão disciplinar: o que esta em jogo é o valor que damos ao Sangue de nosso Salvador. Ou pela Fé nele nutrida damos o testemunho de nosso próprio sangue; ou então, proclame-se aos quatro ventos que o problema se reduz a uma estrita e humana disciplina sem possibilidade de recursos à instância mais alta, para a paz de consciência e até sem possibilidade de defesa.

Independentemente do caso de Dom Lefebvre, o esquecimento das verdadeiras dimensões sobrenaturais da Igreja, reduzida a uma sociedade multinacional associada ao Comunismo e à Maçonaria, e totalmente absorvida nos negócios deste mundo, envolve uma tenebrosa impostura porque, com o pretexto de melhor servir o homem, priva os infelizes habitantes deste mundo depravado, da última esperança a que todos se apegam. Ao homem não se pode propor somente o humano.

Escondam-lhe a Casa Dourada que justos e pecadores, nos caminhos da vida têm como a estrela dos magos; tirem-lhe a devoção dos santos do Céu, eles se acotovelarão nos terreiros espíritas. Tirem-lhe os santos anjos, eles procurarão os demônios. E as almas se perdem diante dos Pastores mais inventivos do que o Senhor Jesus que por vezo do ofício quis nos salvar num tosco madeiro com seu Preciosíssimo Sangue.

Non dico più. Permanete nella santa e dolce dilezione di Dio. Gesù dolce. Gesù amore.

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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