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Ainda a Igreja e o mundo



Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 03-11-1973


NA mesma linha de nosso artigo de 5ª - feira, insistamos no trágico binômio, e no estado de confusão e escândalo dos grandes problemas humanos que pedem prudência e sabedoria quer na ordem temporal para conseguirmos um mundo melhor, quer na ordem sobrenatural para valorizarmos ao máximo o Sangue que foi derramado para nossa Salvação. E quem diz salvação ou santificação nesses termos envolve todos os problemas humanos, que só nesta pauta têm cabal solução.


ORA, essa dupla colocação dos problemas humanos nunca, em toda a história da Igreja, esteve tão embrulhada, tão mal coordenada. A civilização se afastou ostensivamente de Deus, se afirmou orgulhosamente de seu maravilhoso êxito, o fato do homem ter pisado a Lua. Para vários autores, padres católicos ou pastores protestantes, essa ida do homem à Lua, que é um subúrbio da Terra, pareceu coisa muito mirabolante, e muito mais maravilhosa do que a descida do Verbo de Deus à terra. Fascinados, os homens da Igreja em imensa maioria e portentosa reunião resolvem tirar a Igreja da posição inferiorizada e obscura. A fórmula será a da "abertura para o mundo": e para começar essa operação o primeiro cuidado foi o de apagar os equívocos sentidos do termo, e logo o de esquecer que, entre esses sentidos, toda uma tradição milenar fala de um "mundo" que é inimigo. Para acabar com essa inimizade nascida de mal-entendidos a Igreja deveria abrir as portas a esse inimigo para bem mostrar que repelia a doutrina do Concílio de Trento e de toda a tradição católica. Essa abertura seria a fórmula ideal para uma coordenação benéfica para o homem. A Igreja e o Mundo, em abençoada aliança, trabalhariam pelo bem do homem. E aí está o resultado cômico: efetivamente estão trabalhando eficazmente para aquilo que até poucos anos atrás a Igreja Una, Sancta, Católica e Apostólica chamava de mal.


RECENTEMENTE o episcopado francês lavrou um tento de "abertura ao mundo". No dia 12 de julho foi publicada no Journal Officiel a lei que torna obrigatória "a informação sexual" nas escolas da República. Antes da lei do aborto com que o Governo francês pretende massacrar fisicamente os inocentes, através do Ministério da Saúde, já os vinha massacrando moralmente pelo Ministério da Instrução pública. Com base naquele decreto, sob pretexto de informações integradoras do homem moderno e descomplexado, abre as escolas ao sadismo de uma luxúria oficial. Logo, com primorosa apresentação gráfica a editora Hachette lança uma ENCICLOPÉDIA DA VIDA SEXUAL em cinco volumes gradativos, o 1º para crianças de 7 a 9 anos, o segundo para as crianças de 12 a 14. Admiramos a delicadeza que dedica um volume inteiro da Enciclopédia a cada três anos e a suavidade com que os autores passam da liberação dos prazeres da masturbação, do conteúdo positivo da homossexualidade à plena libertinagem homo ou heterossexual. O que domina toda a obra é a preocupação de liberar a nova geração de todo e qualquer preconceito.


EVIDENTEMENTE, às crianças tão diligentemente iniciadas nos prazeres do sexo a Enciclopédia Hachette, com base nas leis do País, logo as prepara para as precauções antinaturais dos contraconceptivos, e certamente também já prepara seus espíritos para completar a obra da pílula: o aborto. Os dirigentes dessa obra diabólica de degradação da infância começam por pretextar liberação dos preconceitos tidos por artifícios de mentes doentias, e completam sua obra pela liberação das consequências naturais dos atos.


O HOMEM futuro é assim preparado a não seguir nenhum mandamento, nenhum princípio, ficando livre de qualquer restrição da castidade, e desde logo estando autorizado a matar o ser humano que venha a nascer de algum verbete da Enciclopédia Hachette mal interpretado. Mas o espanto dos espantos não reside na atmosfera moral do Governo do Sr. Pompidou, e muito menos na sensibilidade ética da Editora Hachette que nossa VOZES sonha um dia igualar. Não. O espanto dos espantos está na magnífica indiferença do episcopado francês, e portanto na do episcopado do mundo inteiro que não tem uma palavra para repetir as palavras mais duras de Jesus: Ai de quem escandalizar uma dessas crianças! Melhor seria se atasse ao pescoço a pedra mó e se atirasse ao poço.


E NOSSOS Bispos nada fizeram! "Nada", grita La Contre-Reforme Catholique du XXe Siècle, dirigida pelo Padre Georges de Nantes. Ou fizeram alguns pronunciamentos anódinos, como o do Cardeal Marty, a propósito das experiências nucleares na França, onde o eminente amigo e admirador de Dom Helder fala no respeito da vida humana e no dever da Igreja falar quando estão em jogo preceitos evangélicos. Eis o que disse o Cardeal Marty no dia 4 de agosto em Ars: "Nosso papel não é o de nos empenharmos na política, mas, quando o Evangelho está em causa, nós não podemos nos calar."


ORA, calaram-se, aprovaram a lei da informação sexual e calaram-se durante o debate sobre o aborto. E em relação aos católicos que ocupam cargos políticos não houve sombra de qualquer advertência ou ameaça.


E AÍ está como, numa grave crise da civilização, quando os homens por si mesmos se afastaram do humano, agrava-se a calamidade com as atitudes tomadas pelos homens de Igreja, mais afinadas pela ONU ou por outros diapasões do século, do que pela voz de Jesus Cristo. Feitas as contas, parece-me que a máxima gravidade dos tempos modernos reside na capitulação dos homens de Igreja diante do inimigo. Só nos resta gritar: "Usquequo exaltabitur inimicus meus super me?"

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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