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Amor, casamento, divórcio

Por Gustavo Corção

(retirado de “A Ordem”, de Fevereiro de 1952)


Se eu asseverar que existem muitos casais infelizes, e que o número deles tende a crescer, tornando-se uma componente considerável de nossa crise social, creio que ninguém exigirá de mim as estatísticas comprovantes. Há certas coisas que saltam aos olhos; e tenho para mim que a maioria dos inquéritos e dos levantamentos estatísticos só serve para mostrar, com o adorno das cifras, o que todo o mundo está cansado de saber. Chego até a pensar que muitas dessas pesquisas sociológicas são movidas por um gosto semi-consciente de desvalorizar o bom-senso, ou de levar ao descrédito os mais elementares princípios. No caso vertente, e para descobrir que as famílias estão funcionando mal, eu não preciso andar de porta em porta com um impertinente questionário. Basta-me observar a rua, os bondes, os cafés, para poder concluir que as casas já não retêm as pessoas. A febre nas ruas prova a agonia das casas. E como a felicidade conjugal está vinculada à casa, ao equilíbrio, ao poder de retenção da casa, posso deduzir do aspecto publicado nas ruas as infelicidades escondidas nas casas.


Além disso, temos dados mais convincentes nos casos mais próximos. Realmente, salta aos olhos do mais descuidado observador que o número de casais infelizes cresce dia a dia, e que esse problema já pesa na sociedade com graves repercussões no econômico e no político.

Diante de um fenômeno desta natureza, e de tão sérias conseqüências, o problema que logo se impõe é o da pesquisa das causas. Mas nem todo o mundo pensa assim. Há pessoas, animadas de excelentes intenções, que não crêem na utilidade dessa pesquisa, ou não têm tempo a perder nessas ponderações. Chegam correndo, nervosos e filantrópicos, com a primeira maravilha curativa que encontraram para as contusões de amor, sem considerar o perigo de agravar a causa do mal com o tratamento do sintoma. Se há pessoas infelizes é preciso socorrê-las com urgência. Se há casais desajustados, é preciso proporcionar-lhes, o mais depressa possível, uma nova combinação de pares mais harmoniosos.

A idéia que preside essa terapêutica matrimonial é a seguinte: os casamentos se fazem por acaso, numa espécie de movimento browniano de encontros fortuitos, em que não pesa a razão. E assim sendo, para libertar o homem dessa tirania do acaso, é preciso conceder-lhe sucessivas oportunidades até que possa encontrar a boa solução.

Ora, o que pretendo mostrar nesse estudo é que a causa principal desse estado de coisas é justamente essa negligência das causas; ou melhor, é o clima de futilidade e de irresponsabilidade em que se fazem os casamentos.

Poderíamos aqui invocar os inquéritos organizados nos Estados Unidos. Eles provam insistentemente que a maioria dos divórcios é motivada por coisas de uma espantosa futilidade; e provam também, como era de esperar, que se uniram levianamente os que levianamente se desunem.

Esta é a causa principal dos muitos casamentos infelizes: a falta de preparação, a leviandade com que se casam, a atmosfera de frivolidade, de imprudência e de imaturidade que cerca o mais grave dos atos humanos.

É claro que o homem é extraordinariamente engenhoso na arquitetura de sua infelicidade. Ainda que os fatores extrínsecos sejam seguros e bonançosos, o homem traz em si a borrasca. Ainda que os elementos econômicos, afetivos e temperamentais sejam favoráveis, o homem se encarrega freqüentemente de inventar sua desventura.

As causas da infelicidade são pois numerosíssimas. São entrelaçadas, combinadas, variadas, convergindo todas para o mesmo epílogo de lágrimas. Não pretendo deixar aqui uma receita de paraíso conjugal, nem pretendo que o problema seja fácil. A vida conjugal sempre foi difícil; e sempre o será. Mas o que se pode dizer sem erro, e sem ridículo otimismo, na atual conjuntura em que vivemos, é que o desvario ultrapassou seus razoáveis limites, e que alguma coisa pode e deve ser tentada no sentido de uma recuperação. E para isto cumpre isolar, no emaranhado de causas, aquela que mais influi na aceleração do mal.

Torno a dizer que é a imaturidade, o despreparo. As outras causas são todas tributárias dessa imensa bacia hidrográfica da frivolidade. As pessoas se casam por motivos oblíquos; se casam sem saber o que é o casamento; fundam família sem conhecer o que é a família; mudam de estado com ponderações menores do que os motivos de escolha de uma carreira, e às vezes tão leves como as que determinam a escolha de uma gravata. Ignoram a natureza do novo estado; desconhecem-se mutuamente os que se propõem viver unidos; e se ignoram a si mesmos, seus próprios recursos, seus novos deveres, suas responsabilidades novas.

Ora, o divorcista começa por conceder que esse desatino é normal, e nos traz um remédio que ainda o tornará mais desatinado. Seu remédio virá pois incrementar as causas do mal. Se já existe uma alarmante falta de seriedade no regime da indissolubilidade, é fácil imaginar o delírio a que se chegará no regime do divórcio. E essa é a primeira contradição intrínseca do divorcismo: pretende curar alargando as fontes do mal, pretende remediar com sua pomada de emergência dez infelizes, à custa de cem outros que já se colocam na fila da infelicidade.

Mas o divorcista — seja dito em sua homenagem — não percebe essa contradição; e não a percebe justamente porque renunciou, de antemão, usar aquilo com que se evidenciam as contradições. Para ele, como já disse, o casamento é casual, essencialmente irrefletido, e não pode deixar de ser assim uma espécie de loteria onde pesa mais a sorte do que a razão. Dizem por exemplo que o amor é cego, e que é impossível, em meses de noivado, conhecer perfeitamente a pessoa com quem se delibera fundar uma família.

Concedo que é impossível, em meses, conhecer perfeitamente o outro. Vou até mais longe. Se é preciso conhecer perfeitamente o outro em todos os seus recantos psicológicos, a vida inteira não basta, e deveríamos adiar todos os casamentos par o dia do juízo final. Ou então, para atender às flamas do mais impaciente amor, deveríamos estipular que os noivos esperassem a provecta idade dos senadores.

O que é evidente, nesse pessimista irracionalismo, é que a incapacidade de conhecer o outro, se destrói o casamento indissolúvel, destrói também o divórcio. Porque o divórcio se baseia justamente nessa idéia insensata de que, num certo ponto da vida conjugal, a gente esgota completamente o conhecimento do outro, a ponto de lhe recusar a mínima possibilidade de recuperação.

Concedamos pois que o noivado é curto para a exaustiva análise dos noivos. Mas daí a recusar a possibilidade de um certo conhecimento, e a necessidade de uma certa preparação, vai um abismo. Essa idéia se reduz a afirmar que o homem está completamente desarmado para os atos mais graves de sua vida. Sua razão lhe serve para instalar um aparelho de rádio, mas é incompetente para fundar família. Sua inteligência lhe basta para demonstrar que a soma dos três ângulos internos de um triângulo é igual a dois retos, mas é deficiente para apreender a natureza desse outro triângulo em cujo vértice nasce uma criança.

É claro que a vida está cheia de imprevistos. A própria criança é um destes, e dos mais terríveis. Mas dizer que a vida é somente formada de imprevistos, diante dos quais o homem é impotente, equivale rigorosamente a denunciar toda a validez da moral. Convém firmar este ponto: a pessoa que admitir a incompetência da razão nos atos mais graves da vida está admitindo tacitamente a falência total dos princípios de moralidade. Bem sei que já muita gente admite essa falência, e que seria preciso deslocar a origem das coordenadas, e escrever um outro livro para discutir esse problema. Neste que agora escrevo [1] suponho no leitor esse mínimo — a confiança na ordem moral. E já me declararia satisfeito se conseguisse convencer algum divorcista de seu radical amoralismo. Seria um progresso para ele se largasse o equívoco e enfrentasse com lealdade o niilismo moral. Aliás, se isto acontecesse, o divorcista deixaria de pleitear o divórcio, e passaria a defender o amor sem regras.

Dizer que o amor é cego equivale a afirmar a radical incompatibilidade entre o amor e a razão. O caloroso amor será cego; a lúcida razão será gélida. Divide-se então o homem em si mesmo de um modo irremediável, e o fogo do amor será uma loteria com poucos prêmios e muitos bilhetes brancos. A razão virá mais tarde, quando esfriar o amor, para passar um pito no apaixonado; ou para se rir amarelo da ilusão dos que ainda vivem nos amorosos torpores.

É claro que, se chamamos de Razão essa mesquinha faculdade de passar pitos ou de achar sorrisos de gélido escárnio, haverá uma absoluta incompatibilidade entre a Razão e o Amor. Se a Razão é apenas cálculo e mesquinharia, já está implícita nesta definição a incompatibilidade e a cegueira do amor. Neste caso, a moça que se casa com um rapaz padrão O para ter um caso de peles, estará fazendo um casamento de razão. o moço que se casa com uma velha rica também estará fazendo um casamento de razão.

Ora, no meu vocabulário, esses dois estão consumando os menos razoáveis, os mais insensatos casamentos. Estão, inclusive, fazendo um cálculo errado. Estão cegos.

No meu vocabulário, isto é, no vocabulário do bom-senso e da reta filosofia, o único casamento razoável é o casamento de amor. A razão é intrinsecamente generosa, e é vivificada e dilatada pelo amor. Procurarei explicar-me melhor, apelando para as mais profundas ressonâncias das almas. E começo por perguntar: Quem quererá ser amado sem ser compreendido?

Realmente, os mais humildes, os menos filosóficos namorados sabem que a compreensão é uma nota essencial do verdadeiro amor. Nos seus delírios, nos seus românticos arroubos, o mal-atendido namorado se queixa de serincompreendido. Vai nessa queixa, evidentemente, muita estultice, porque às vezes a amada se afasta do seu suplicante por lucidez. Seja como for, usada com justiça ou com insensatez, o fato é que a nota de compreensão é inseparável do conceito que todo o mundo tem do amor. De onde se conclui que no unânime consenso, e de acordo com os mais profundos instintos do homem, o amor não pode ser cego.

Ao contrário, o amor é lúcido. O amor, o verdadeiro amor é ardentemente compreensivo. Só quem ama verdadeiramente, conhece verdadeiramente. Se é verdade que o conhecimento precede o amor, é verdade também que o amor precede a dilatação do conhecimento.

O amor, o verdadeiro amor tem um conhecimento penetrante, candente, fino, lúcido; tem um conhecimento de ressonância profunda, de identificação, de conaturalidade.

O amor, o verdadeiro amor advinha, penetra, descobre, simpatiza, faz suas as aflições do outro, dá ao outro suas próprias alegrias. É compreensivo. Mas não é compreensivo no sentido que se dá a esse vocábulo, quando quer significar uma tolerância que fecha os olhos. Não. O amor verdadeiro é compreensivo num sentido maior, que não fecha os olhos, mas que também não fecha o coração. Vê as falhas do outro, vê as misérias do outro, com uma generosa inquietação, com uma piedosa solicitude. Mas vê. Vê com amor. Mas vê. E é nessa visão que ele encontra as forças de paciência para os dias difíceis, e que se defende das amargas decepções. A miséria, o defeito, a falha, apresentados pelo amor, conservam sempre a dignidade do contexto em que foram apreendidos, sem sacrifício da veracidade. Porque o amor é veraz; é verídico; é essencialmente amigo da verdade. E como compete à razão guiar a alma nos caminhos da verdade, segue-se com lógica irresistível que a razão é o piloto do amor.

Mas há um amor que é efetivamente cego; um amor que não é verídico; um amor que não é compreensivo; um amor que não é transformante, e que não ressoa, que não simpatiza, que não advinha, que é inimigo da verdade. É o amor-próprio. Cegueira voluntária, o amor-próprio se compraz nas mentiras que agradam as paixões. Princípio de divisão interna, o amor-próprio divide o homem de si mesmo.

A maioria dos dramas consiste no equívoco com que se rotula de amor a triste pantomima do amor-próprio. Esses romances de amor são comédias de erros em que cada um engana o outro, e a si mesmo se engana, com o jogo gracioso que se convencionou ser próprio da juventude e da esgrimagem dos sexos. O centro de todos os disparates é o amor-próprio, a divisão do eu, o divórcio interno entre a vontade e a inteligência, em torno do qual se forma a constelação de tendências que Karen Horney chamou de pride system.

O rapaz que descobre, um ano depois do casamento, que foi pescado por causa do padrão O, e que sua mulher casou-se efetivamente com o casado de pele, dificilmente poderá alegar a obnubilação produzida pelos encantamentos do noivado. Sua decepção é injusta. Não viu porque não quis ver. Cegou-se por amor-próprio. Enganou-se a si mesmo, e por conseguinte faltou com a devida veracidade, isto é, com o verdadeiro amor. Estenda pois a si mesmo a decepção, e procure dar-lhe os nomes de humildade e paciência. E sobretudo procure, agora em bases mais autênticas, recuperar a lealdade ferida pela comédia do amor.

Conceder plenos direitos à amarga decepção da vaidade ferida, equivale a conceder direitos ao egoísmo, e a negar as verdadeiras possibilidades de recuperação na base da verídica humildade. Este é o ponto de soberana importância. Por mais generalizado que esteja o disparate, o equívoco, o mal-entendido, não é possível estruturar a sociedade na base de um irracionalismo que proscreve a razão, e que anula todas as oportunidades de restauração dos valores genuínos.

Daquele pobre casal de ludibriados, eu diria que a verdadeira oportunidade de amor começa nessa ferida, justamente nessa hora magoada em que a humildade pode vencer o egoísmo. E é nessa oportunidade única que lhes pretendem roubar, para que recomecem indefinidamente, sem progresso, sem lucro, sem dor, a insípida comédia de erros.

Torno a dizer que o amor é lúcido, que a razão é o piloto do amor, e que o casamento exige de cada um a exata tomada de consciência, que de modo algum significa uma ducha gelada na incandescência do amor. E volto a asseverar que a causa principal da crescente instabilidade conjugal está na leviandade e na falta de preparação.

A preparação para o casamento pode ser considerada em três partes:

1o. — Conhecimento da natureza do ato, e do novo estado. O que é o matrimônio? O que é a família? Qual é o fim principal do casamento?

2o. — Conhecimento mútuo no amor.

3o. — Conhecimento de si mesmo, preparação material e moral de cada um, tendo em vista as exigências do novo estado.

Vou aqui abordar somente a primeira parte, que poderíamos chamar de preparação remota, porque deve ser anterior, para ser mais eficaz, ao encontro de amor. É claro que essa tomada de consciência da natureza do matrimônio será benéfica em qualquer momento da vida conjugal; mas é claro também que sua anterioridade trará um acréscimo considerável de garantia para a felicidade conjugal.

Não é demais insistir na importância dessa tomada de consciência. A sociedade inteira, com seus múltiplos problemas depende da concepção de casamento e família, que se respira. A sorte do mundo depende, em primeira linha, da compatibilidade entre as instituições e o amor. Se o amor for banido das estruturas; se o amor ficar reduzido a uma entidade vadia e desclassificada; ou se o amor só tiver um lugar de repouso fora das categorias sociais, ainda que seja um trono romanticamente instalado acima das vicissitudes da vida comum — a sociedade humana conhecerá uma espantosa degradação.

O amor precisa casa. O amor quer morar nas casas dos homens, nas instituições dos homens. E é esse o principal objetivo de nosso estudo: traçar a planta baixa e os cortes principais da Instituição conjugal, isto é, da Casa do Amor.


As pessoas que se casam levam escondidos no enxoval os seus múltiplos defeitos. Se fosse preciso ser perfeito para casar-se o casamento só conviria aos santos. Ou então, como desejam os defensores do individualismo divorcista, só conviria para os poucos felizardos que encontrassem um perfeito encaixe das recíprocas imperfeições. O casamento, nesse caso, não teria nenhuma eficácia sobre os cônjuges, podendo até servir para os confirmar no satisfeito egoísmo.

Ao contrário, em sã doutrina, nós afirmamos que as instituições bem fundadas na natureza das coisas, exercem uma influência benéfica, que reverte sobre as pessoas, em analogia com o que se chama “graça de estado”, no plano da vida sobrenatural. A casa ajuda os casais. As imperfeições das pessoas são socorridas, e de certo modo compensadas, desde que exista uma boa compreensão da estrutura em que estão engajadas. E no casamento isto é de capital importância. Saber o que é o casamento, o que é uma família, é a meu ver o primeiro e imprescindível fator da felicidade conjugal. Faltando essa clara consciência do ato e do estado, ainda que haja amor, igualdade de fortuna, paridade de gosto, de educação e de temperamento, o casal dificilmente se equilibrará nos dias de tormenta. A firmeza da casa está na tomada de consciência do casal, na exata compreensão da natureza da instituição e do novo estado.

É desse aspecto do problema que trata o presente estudo, e cumpre advertir que aqui nos colocamos na perspectiva da razão, e não na luz da fé. O casamento é aqui considerado na sua natureza como instituição humana; e a crítica que fizermos ao divórcio tem a mesma perspectiva do direito natural.


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