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Dez Anos (I)



Publicado por Gustavo Corção n’O Globo em 04-04-1974


APROVEITEMOS a data aniversária da salvação do Brasil para tecermos algumas considerações em torno dos regimes políticos. Qualquer leitor que nos acompanhe há mais de dez anos já terá percebido que nosso antigo e ingênuo credo democrático não resistiu às últimas experiências deste século.


NÃO mudamos, nem podemos submeter aos ventos os princípios fundamentais da lei natural que são a lei de Deus inscrita na natureza das coisas. Ainda nos sentimos obrigados a trazer o melhor de nós mesmos para a edificação da Polis, mas já não sabemos o que fazer da variedade de disparates que se estendem diante de nós neste estuário de erros. O que me parece indiscutível é que época alguma foi tão confortável como esta que temos a honra de viver. Sobejam os instrumentos com que se resolvem as pequenas dificuldades da vida, mas não sabemos o que fazer da vida, e até levamos nossas indecisões para as coisas que julgávamos mais definitivamente assentadas.


TODOS sabemos que vivemos um regime político de salvação nacional. Um regime de emergência, que não tenho pressa alguma de mudar porque não vejo outro, e porque não imagino que ninguém, com plena posse do juízo, me venha falar em redemocratização.


NA verdade, dos três clássicos regimes políticos possíveis, o que pretendeu devorar as perfeições dos outros dois e tornar-se, em absoluto, o regime político por excelência, o ideal supremo incontestável, foi o grande malogro do século. Foi o grande desmascaramento. Foi a falência fraudulenta e vergonhosa.


NA verdade, ainda é em Santo Tomás que encontramos a pista do futuro quando, em vez de considerarmos cada um dos três regimes clássicos em absoluto, consideramos apenas a perfeição de cada um, e a necessidade da integração de todos três num regime composto.


ESSAS três perfeições, cada uma limitada pelas outras duas, são: 1) unidade de governo; 2) escolha dos melhores e não dos "representantes do povo"; 3) participação proporcionada do maior número na formação do bem comum. A composição dessas três perfeições, em doses variáveis conforme a índole e a história de um povo, dará o regime político adequado e conveniente, sujeito a variações em torno da mesma invariante procura do bem comum, do bem público, da felicidade possível neste vale de lágrimas.


NENHUM desses regimes "pode funcionar sem os outros, mas o pior de todos, quando isolado e absolutizado, é sem dúvida alguma o "democrático" porque sua carência fundamental, a do prestígio da autoridade e a do prestígio das elites verdadeiras, é profundamente explorada pelo mal do século, a anarquia.


PARA começar, o liberalismo foi o devastador desse ideal político que passou a espezinhar os ideais da verdade e de bem em favor de um absoluto demente: o da liberdade. O símbolo dessa monstruosidade está no presente que a França deu aos Estados Unidos e que está na foz do Hudson com um solecismo político escrito no pedestal: "A liberdade ilumina o mundo."


DESDE o princípio do século vêm as esquerdas corroendo o subsolo da civilização, mas foi na comédia de erros da guerra que os povos de língua inglesa, numa espantosa mistura de heroísmo e asneira, desfraldaram no mundo a bandeira das "Democracias". Sim, durante cinco anos, o termo, a idéia e a imagem de tal coisa se impuseram no mundo ocidental a milhões e milhões de cidadãos que acordavam desejando a vitória da democracia, e dormiam para sonhar com o esmagamento de Hitler.


HILLAIRE BELLOC aborrecia-se quando lhe diziam que a Inglaterra, na heroica resistência de Londres, estava defendendo a "democracia". Então não sobrou povo, regimento, canhão para defender a civilização. E foi, por este lapso, por esse esquecimento, que a URSS, ao ser invadida pelos nazistas, tornou-se imediata e instantaneamente irmã, aliada e até principal vencedora.


TODOS nós sabemos que essa história de governo do povo, de revolução do povo, de democracia popular, são conhecidíssimas imposturas. Na revolução russa o papel do povo foi sempre o mesmo, desempenhado com mais sangue do que nunca.


NO ocidente que se deu ao luxo de criticar nosso 64, todo mundo sabe que o sufrágio universal é um aparelho falsificador, sim, falsificador de candidato. O leitor é identificado, é legítimo, e estampilhado e deixa o dedão em baixo do retrato: mas o candidato, no jogo de espelhos produzido pelo maravilhoso progresso das comunicações, e pelos milagres da propaganda, é uma pessoa falsificada, que ninguém conhece, e que talvez não exista. Já vimos 6.000.000 de eleitores dopados pelo mais puro democratismo, votarem num indivíduo que se chamou Jânio Quadros. Sem falar nos outros.


MAS depois das várias experiências feitas no mundo, a minha convicção é que de todas as formas de democracia, a pior foi a dita cristã. Foi ela quem traiu a França. E são seus vapores que agora inebriam e enlouquecem os cristãos inseguros. A falsa Igreja produzida pela revolução desencadeada pelos inovadores e reformadores da Igreja de Cristo, é um dos mais venenosos frutos do democratismo deste século de empulhamentos. Um dos aspectos mais grotescos desse simulacro de cristianismo que enlameia o mundo é o democratismo que põe a missa de pernas para o ar, e faz do "padre" um presidente de clube.


TEREMOS de realizar árduo trabalho para purificar a "participação" sem a qual não se pode conceber um corpo político feito à imagem e semelhança do homem e de Deus. Será esse um dos mais difíceis trabalhos que se impõem aos séculos futuros. Para começo temos de combater os empulhamentos saídos dos ralos das revoluções ditas populares. Na América do Sul já temos o Brasil e o Chile como exemplos a seguir: eu tive agora uma alucinação, uma miragem - vi um continente inteiro varrido de toda a imundice do século.

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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