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Houston, por Gustavo Corção



Por Gustavo Corção publicado n’o Globo em 25-08-1973


FOLHEANDO o jornal, vi de repente negrejar em grossos caracteres este nome: Houston. E imediatamente lembrei-me do bom e sábio Dr. Stans Murad, a quem certamente deverei o que sobreviver. Foi no seu consultório que ouvi a proposta de uma hipotética escalada que passaria por Houston, o lugar do mundo onde se concentra o saber e a habilidade da especial cirurgia que começou há mais de quatro séculos com Ambroise Paré. Houston! Agora é a figura de um outro amigo que me aparece, a sorrir-me: — Estou com o coração recauchutado. HOUSTON. E já não digo que o nome negreja, porque o vejo dourado ou fosforescente, realçado, transluminoso como um vitral. E em torno desse nome leio "civilização", "progresso", "técnica", "ciência”, "glória e paz aos homens de ciência". E outras coisas.


NUMA visão mais penetrante atravessei o jornal e vi uma sala branca com uma espécie de altar ao centro, onde se via a vítima riscada de sangue, e em volta dela os oficiantes vestidos de alvíssimas túnicas manobravam miniaturas de espada em luta com o anjo da morte, contra quem disputavam mais um ano, ou dois, de uma vida já fartamente vivida. Extasiava-me diante de tão belo espetáculo que magnificamente exprimia o transcendente valor de um minuto de vida humana — que nunca é um "déchet de l'humanité" como dizia Teilhard de Chardin no seu programa de eliminação dos inúteis — e demorava-me na contemplação da cena que tanto dignifica o homem, quando de repente partiu-se o vitral, apagou-se a fosforescência dourada do nome que voltou a negrejar no cabeçalho da curta notícia do jornal. Houston. A notícia versava sobre o achado de trinta e tantos cadáveres de meninos entre 10 e 15 anos, vítimas de uma quadrilha de homossexuais violadores e assassinos.


E PARA assombro meu a notícia mencionava o desaparecimento de 2.000 meninos em pouco mais de um ano, e a impotência de todo o aparato policial norte-americano. Onde foram parar então a civilização, o progresso, a glória da ciência e da técnica?


O LEITOR, mal-humorado e cansado de aturar o que julga ser fruto de meu mau-humor, dirá que nada tem uma coisa com outra e que o valor daquela glória de Houston permanece a despeito desta pavorosa degradação de costumes em Houston. Concordo que o alto valor permanece, mas discordo vivamente da ideia de ausência de nexo entre os dois espetáculos. O nexo existe. O que se oferece ao mundo de hoje, como apavorante espetáculo, é justamente toda uma constelação de nexos entre valores desordenados. Os dois polos dessa desordem civilizacional são o totalitarismo comunista no oriente e o liberalismo democrático no ocidente. Um é cruel; o outro é torpe; os dois conjugados dão essa mistura estonteante que leva nossos filo-comunistas católicos a fingirem um programa de liberações para o atingimento revolucionário de um regime de presídio. E a grande nação norte-americana, que já foi esperança de nossas liberdades cívicas, além de ser também a esperança de nossas coronárias, por ter apostado demais e em falsa direção nos valores de liberdade, aderiu à anarquia revolucionária pela via da tolerância entronizada como virtude suprema. E esvai-se. Não só ela, mas toda a civilização esvai-se nessa espécie de leucemia. O grito de Madame Roland, no cadafalso, continua a ecoar nas abóbadas de uma civilização que imolou os valores da Verdade e do Bem no altar da liberdade. Num certo ponto da história do turbulento ocidente, os homens puseram seu máximo título na ciência das coisas exteriores e inferiores. Santo Agostinho, em Solilóquios, ou melhor, em diálogo consigo mesmo, disse à sua alma que, de início, só queria conhecer duas coisas: Deus e a si mesmo. Toda a Idade Média glosou o mote agostiniano por suas mais doutas vozes, mas o novo mundo, aberto pelas portas da Reforma e do humanismo nominalista e renascentista, desdenhou a sabedoria em favor da ciência dos grãos e dos astros, isto é, das coisas inferiores e exteriores. E a brilhante civilização nascida dessa retração da inteligência produziu maravilhas mas perdeu sua alma. Afastou-se de Deus, e tornou-se infrahumana. Supereletrônica, superatômica, supercientífica, supertécnica — mas infra-humana.


A IGREJA não se cansou de advertir os homens pela voz de seus doutores, e pelo exemplo de seus santos, mas os homens julgavam-se emancipados e libertados de qualquer mãe e mestra. Para cúmulo dos cúmulos, ainda atiram na Igreja a culpa dos pecados do mundo. Nós bem sabemos que os membros da Igreja são justos e pecadores. Sabemos que são mais numerosos os pecadores do que os sábios e os santos, mas quando dizemos que a Igreja lutou, que a Igreja advertiu, que a Igreja ensinou, não estamos, evidentemente, pensando nos exemplos dos pecadores e nos delírios dos loucos. Esses, pertencendo embora à Igreja pela misericórdia de Deus, são muito mais representativos do mundo do que da Esposa de Cristo.


NO SÉCULO XIX, quando a insolência de uma civilização laica se tornava maior, a Igreja manteve magníficos combates contra os pruridos dos ismos do mundo. Combateu com especial vigor o liberalismo e o socialismo, mas hoje é, pelos liberais e socialistas que a não ouviram, acusada de ser ela a fautriz dessa mistura que degrada séculos de ascensão humana. Justamente pelo fato de haver arduamente combatido a Igreja é acusada de ter sido omissa no seu ghetto. O grande pecado de que hoje todos os insensatos acusam a Igreja é justamente o fato de haver gritado, em tempo e contratempo, para advertir seus filhos desgarrados. Para corrigir tal pecado, a loucura paroxística do mundo chegou a compelir os homens de Igreja a aberturas, a aggiornamentos, a diálogos, à tolerância: assim todas as abjeções podem ser multiplicadas sem o perigo de nenhuma voa que as reprove. Por que investigar? Por que perseguir os violadores e assassinos dos dois mil meninos de Houston? Tudo é permitido já que a Estátua na foz do Hudson, contrariando Madame Roland, espalha aos quatro ventos a maior asneira jamais escrita: "La liberte éclaire le monde".


NÓS SABEMOS que a iluminação do mundo compete à Verdade, mas, vivendo numa civilização mais inspirada em Pilatos do que em Cristo, preferimos não falar em Verdade e Bem, que têm ressonâncias de absoluto. Preferimos lavar as mãos e absolver Barrabás. Absolvamos os violadores de Houston como absolvemos o traidor que vendeu aos jornais o documento roubado ao Pentágono.

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