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O que senti

Gustavo Corção

“O Globo” – 04/07/1974

Compelido a voltar a um assunto que seria apenas ridículo sem os altos valores que envolve e sem as centenas de pessoas respeitáveis que compromete, e depois de ter discorrido amenamente em torno de puerilidades que ao menos me descansaram das falsas seriedades que poluem o século, começo hoje por confessar que foi, nesse episódio, o meu principal sentimento, e a minha dor mais difícil. À primeira vista parecerá um simples lugar comum dizer que a carta do “Presidente” da Congregação Beneditina do Brasil não me atingiu em ponto algum. Não me senti picado, mordido, arranhado, envenenado. Nada. Rigorosamente, e diante de Deus o digo, mal percebi que alguém empostava a voz e alçava-se no bico dos pés para chegar a produzir este guincho de grilo: – “Em nome de 424 religiosos, eu Basílio Penido, Presidente da Congregação dos Beneditinos do Brasil, venho declarar que o Sr. G. C., escritor de 77 anos, há muito tempo levanta-se como um energúmeno de maneira irresponsável e caluniosa, contra as tentativas da Igreja em adaptar-se aos tempos modernos.” A ordem das palavras e a pontuação pode ser outra, que no momento não posso verificar. Mas na revista VEJA leio a condensação essencial da página inteira do “Jornal do Brasil” que pode ser esta: “Em nome dos 424 beneditinos do Brasil, o Presidente Penido injuria o Sr. G. C. como a Palma Cavalão do Eça de Queiroz.” Mas a mão que queria esbofetear G.C. resvalou e esbofeteou 424 monges beneditinos. E é precisamente nessas faces amigas, de pessoas sérias e nobres a quem devo o que não poderia jamais resgatar, mas felizmente já encontrei amigo que com o próprio Sangue resgatasse. Enquanto estamos na pauta dos sentimentos não procurarei esconder a dor que senti no melhor de mim mesmo, isto é, na doce gratidão sentida por tantos e tão bons amigos que durante tantos anos me trouxeram consolo e sabedoria.

Lembro-me como se fosse ontem do dia em que pela primeira vez subi a ladeira do São Bento à procura de um Dom Gerardo, e fui atendido por um moço de óculos escuros que parecia estar à minha espera, sabendo por uma conversa de anjos, que o bisonho indivíduo esperado era propenso a enganar-se de portas, janelas e esquinas a dobrar. Não exageraria se dissesse que sempre me lembro dele a me levar pela mão. Antes disso acodem-me à memória as que sempre me encontravam em casa as portas abertas. As portas e o coração. Lauro e Nélson; Haroldo e Weimar; Rocha e Fábio, o austero Fábio que o Presidente Basílio diz ter entrevistado numa sessão espírita.

Todas essas gratíssimas recordações me trouxeram uma intensa aflição quando imaginei o que deveriam estar sentindo meus bons amigos beneditinos quando viram publicamente enxovalhada a honra da Igreja, a venerável glória de 14 séculos de colheitas de Nosso Pai São Bento, e até, pelo que imaginassem estar eu também sofrendo. Tentei confortá-los com o que de mim já disse, não apenas por ser ridículo demais o ataque, mas sobretudo porque esse episódio tolo nos espicaça e nos obriga a procurar as causa profundas de tudo isso que ultimamente me colocou numa berlinda que será uma variante moderna, avançada, da Cruz de Nosso Senhor na qual, caríssimos amigos, todos nós nos gloriamos, e ainda nos reunimos a despeito de divergências maiores ou menores.

A primeira reflexão de capital importância, para qual chamo a atenção e quase digo convosco todas as energias dos verdadeiros filhos de São Bento é para a abismal divergência que separa hoje dois tipos de “beneditinos” ambos “presididos” pelo mesmo personagem, e designados pelo mesmo título. E, entretanto, diferentes como o cristianismo de qualquer das religiões africanas agora professadas em torno do Abade Beneditino de Salvador. Quantos beneditinos verdadeiros Dom Basílio efetivamente preside? Não sei. A revista VEJA fala de um total bruto de 424. Como não tenho ultimamente freqüentado nenhum dos mosteiros do Brasil não tenho idéia da profundidade da degradação do espírito beneditino e da proporção dos dois tipos que se contrapõem. A primeira coisa a considerar e a enfrentar com coragem, com amor à verdade, e com uma derradeira prova de dedicação ao Patriarca do Ocidente, é a realidade de uma divisão grave, de dois espíritos incompatíveis. A segunda idéia a alimentar e a robustecer é a da necessidade de rejeitar o falso ideal de unidade que vem sendo pregado. Voltaremos insistentemente à atitude que convém diante desta dolorosa constatação.

Posta a coisa nesses termos, forçoso é reconhecer três coisas que em nossas primeiras aproximações pareciam insuportáveis: na medida em que os 424 beneditinos já não se dão acordo da duas “figuras” em que se dividem, e aceitam tranqüilamente a idéia de “presidência” recentemente inventada, D. Basílio representa efetivamente 424 “beneditinos”; segunda: nesta hipótese terá efetivamente desonrado, magoado, envergonhado uma minoria de beneditinos católicos; mas também terá trazido a maior satisfação à maioria que se torce de prazer na leitura de seu português. Terei eu errado quando em meu primeiro artigo tomei a iniciativa da discriminação? Competirá aos injustamente ofendidos (não eu!) a rejeição de seu direito de dizer tudo o que quer em nome dos que não querem.

Na verdade, a única relação verdadeira estabelecida pela carta de D. Basílio é a que se estabelece entre ele e mim: aí, descontadas as inexatidões dos títulos e das frases atribuídas aos mortos, é essencialmente verdadeira a afirmação central da carta: nela, diz o Presidente que é meu inimigo, o que é verdade. Eu o sou; dele e de sua espécie. E, em nome da glória da Igreja, da Caridade e do zelo da salvação das almas hei de combater com todos os dons que Deus para isto me deu. E ai de mim se os não usar. Voltaremos ainda a essa oportunidade de reflexões que o tolo episódio nos oferece, e convidamos os amigos a esta boa cruzada, sim CRUZADA: e riam-se os demônios desta denominação. A única coisa que não podemos aceitar um só minuto é a repugnante idéia de unir o verdadeiro ao falso para compor o cômodo.

P.S. Este artigo foi escrito no dia do Preciosíssimo Sangue de Cristo, e eu peço a MEU DOCE CRUCIFICADO que ponha uma gota de seu Sangue nestas linhas que escrevo misturada às minhas lágrimas. Gravo esta data para evitar qualquer equívoco entre o que hoje escrevo e o que vier acaso a acontecer até o dia da publicação deste artigo, o de quinta e o de sábado.

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