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Rio-me ou Choro?

Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 1-12-77


NO ULTIMO número da revista chamada Pergunte e Responderemos seu principal e único redator, D. Estevão Bettencourt OSB aventurou-se a escrever sobre D. Marcel Lefebvre, Jean Madiran, e demais defensores da mesma boa causa. E aventurou-se a escrever contra Madiran e D. Lefebvre no mesmo artigo em que volta ao famoso Ponto 7 do novo missal, para defendê-lo.

SE O LEITOR imaginou que nestas linhas eu correria a criticar e contestar tal artigo, enganou-se. Desde o início da leitura não senti nenhum desejo de responder ao responderemos de D. Estevão Bettencourt OSB por uma simples e límpida razão: ele está literalmente e rigorosamente abaixo da crítica.

NOTE BEM, leitor, que é a própria seriedade da causa, de sua santa e infinita seriedade, que me impede de levar a sério este e outros números da revista onde D. Estevão costuma discorrer sobre todas as coisas discutidas e sabidas, como um atualizadíssimo Pico de Mirandola.

E AGORA pondero: se não posso ou não devo levar a sério os artigos de D. Estevão, talvez possa aproveitar o ensejo que me oferece para um fugaz divertimento. Meses atrás Tristão de Athayde, numa página de entrevista sobre o caso de D. Lefebvre, manifestou saudades de meu humorismo. Eu também tenho saudades do riso que Rabelais saudavelmente recomendava: “Mieux est de ris que de larmes écrire, parce que rire est le propre de l’homme“. Creio que não vou ao cinema há mais de dez anos, e pelo que ouço dizer receio que jamais conseguiria rir no cinema de hoje como torci-me de rir, de rir a valer, na minha longínqua e ensolarada mocidade. E o próprio espetáculo do mundo, sempre generoso em seus disparates, é hoje mais lúgubre do que cômico. Todas as manhãs quando, depois do café, me sento no meu laboratório de análises de fezes, sinto cada dia mais opressiva a atmosfera que ainda devo respirar e as notícias que ainda devo engolir. Ouçamos, pois, a nostálgica reclamação de Tristão de Athayde, sigamos o enérgico conselho de Rabelais, e aproveitemos a oportunidade generosa que D. Estevão Bettencourt OSB nos oferece — e riamos, porque o riso é próprio do homem. Os religiosos e hierarcas da novíssima igreja diriam que o riso é um direito humano.

* * *

ESTRANHA COISA! A efervescência das recordações postas em movimento turbilhonante nos recantos da alma produz aproximações e saltos mais inopinados do que as associações de imagens e de idéias. Por que secretas afinidades, tendo começado pela macilenta e espectral magreza de D. Estevão Bettencourt OSB fui eu parar, sessenta anos atrás, no teatro Recreio a me torcer de rir diante da genial e inesquecível corpulência do português Chabi no segundo ato da peça Conde Barão? A pedido dos comensais interessados no dinheirão do novo rico que comprara castelo, títulos e antepassados, Chabi, isto e, o Conde Barão recitava O Melro de Guerra Junqueiro:

“O melro eu conheci-o,

Era negro, vibrante, luzidio.

Logo de manhã cedo…”

MAS TRAIDO pela memória, o Conde Barão intercalava aqui e ali alguns versos tirados de O Fiel, do mesmo Guerra Junqueiro, e dest’arte ora fazia o cão chilrear, ora fazia ladrar o pássaro. Terminada a genial declamação, rubro de modéstia o Conde Barão desculpou-se: — “Parece-me que andei a misturar um pouco o cão com o pássaro…” O moço louro de sessenta anos atrás fartou-se de rir, e durante muitos anos procurou decantar, destilar o bouquet do bom riso que está nos antípodas da moderna pornografia, e da moderníssima estupidez. Queria ainda hoje reviver o gostoso e salgado bom riso.

* * *

MAS AINDA não atinei com o nexo que me levou de D. Estevão Bettencourt OSB ao genial e corpulentíssimo Chabi de minha mocidade. Terá sido o esguio melro o traço de união? Ou, quem sabe, foi apenas o ritmo do anacoluto que imperativamente me dita esta frase inicial de uma lembrança já antiga e já fatigada:

“D. Estevão, eu conheci-o.”

E AQUI não misturarei lembranças de O Fiel, porque o D. Estevão, que há mais de quarenta anos conheço, nunca soube ladrar, como os cães mudos do profeta Isaías; e também porque em nossos espaçados desencontros nunca D. Estevão me deixou marcada lembrança que sugerisse o nome do cão de Guerra Junqueiro — Fiel. Ao contrário, estive sempre a reclamar dele alguma infidelidade.

A MAIS ANTIGA dessas lembranças remonta a um dos anos quarenta. Naquele tempo Fábio Alves Ribeiro e eu dirigíamos a revista A Ordem, por designação do Doutor Alceu Amoroso Lima, presidente do Centro Dom Vital. Antes da Mediator Dei de Pio XII, Fábio e eu, modéstia à parte, já desconfiávamos do movimento litúrgico. Com a consciência prevenida e delicada, Fábio lia com atenção os artigos que nos vinham de fora. Uma tarde vejo-o chegar preocupado à sala de A Ordem, na Praça Quinze. E logo desabafou: tratava-se de um artigo de D. Estevão Bettencourt que Fábio julgava impublicável. Li-o e concordei com Fabio. Nesse artigo, logo na primeira página, D. Estevão dizia que antigamente os fiéis na igreja eram “eu’s” esparsos, mas hoje formavam um só “nós”. E daí por diante o austero monge beneditino massificava a assembleia dos fiéis num irrespirável comunitarismo. Coube-me a áspera incumbência de procurar. D. Estevão e tentar convencê-lo. Lá fui. No fundo da biblioteca do Mosteiro tive de reunir todas as espécies de coragem para enfrentar a espectral austeridade de D. Estevão. Curiosa cena! Quem acaso passasse e visse o neoconvertido, com pouco mais de dois anos de catecismo, curvado diante do austero religioso, imaginaria que o leigo lá estava a inclinar o ouvido às sábias palavras do monge. Ora, o infeliz e consternado leigo, depois de hora e meia de vãos esforços na tentativa de obter de D. Estevão uma atenuação de seu comunitarismo, em favor da inteireza das pessoas, lamentava-se de ser obrigado a manter sua decisão de não publicar o artigo.

CONTAM QUE naquele tempo, se lhe caísse na cabeça uma pedra ou um jambo do claustro, D. Estevão dizia:  _ Uma pedra (ou um jambo) caiu em nossa cabeça.

NÃO TENDO sido nunca assíduo às concerebrações de D. Estevão, não sei até quando usou esse singular pluralismo de fiéis e de cabeças.

Muito mais tarde, em 14 de fevereiro de 1971, recebi uma inacreditável carta de D. Estevão. Publicara eu na véspera um artigo intitulado “Casa de tolerância“, no qual, a propósito dos mil abusos praticados por bispos, sacerdotes e religiosos, expandi minha justa indignação na frase que facilmente viria à consciência de todos os católicos ofendidos na sua fé e no seu amor pela Igreja: “Eles hoje fazem da Casa de Deus uma casa de tolerância”. Ora, em sua espantosa carta D. Estevão me acusa indignado de ter escrito: “A casa de Deus é uma casa de tolerância”. E depois de haver descarrilado na leitura, isto é, depois de ter lido o que ninguém escreveu, se alonga em melífluas reprimendas e em injúrias. A menor que me dirigiu, sem saber o que dizia, era a de simonia. A seu ver eu escrevia assim para fazer sensação, para provocar escândalo e assim ganhar mais dinheiro! Tudo isto entremeado de frases suavíssimas que deveriam atestar sua elevadíssima caridade e suavíssima prudência.

DEPOIS DE ALGUMA hesitação escrevi minha última carta a D. Estevão Bettencourt OSB em meia folha de papel:

“Rio, 17/2/71

  1. Estevão Bettencourt OSB,

RECEBI SUA CARTA de 14 do corrente. Respondo: eu escrevi no meu artigo dia 13: “Eles fizeram da Casa de Deus uma casa de tolerância”. O senhor leu “A casa de Deus é uma casa de tolerância”. Ora, Jesus disse: “Eles fazem da Casa de meu Pai um covil de ladrões” (Luc. XIX, 46). O senhor deverá então dizer que Jesus disse: “A Casa de meu Pai é um covil de ladrões”. Tempus breve est. Ass. G.C.”

EM PORTUGUÊS quero dizer que não posso levar a sério neto tenho tempo a perder com quem tão facilmente treslê. E concluo mais triste do que nunca. Decididamente os padres pós-conciliares não se prestam ao riso são mais lúgubres do que cômicos.

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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