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Um caso singular


Um caso singular

GUSTAVO CORÇÃO

Veio-me agora à mente o caso mais singular de minha longa coleção de polêmicas. Naquele tempo os adversários contra os quais me batia no “Diá­rio de Notícias” e no “Estado de São Paulo” eram os maus governos do Brasil, que além de o arruinarem ainda cometeram o crime maior de abrir as portas aos inimigos da Civilização. O referido caso singular ocorreu no Governo de Juscelino Kubitschek a propósito da instalação da hidrelétrica de Três Marias. Numa demonstração pomposamente feita na televisão, em foto, gráficos e cifras, o Presidente Juscelino empulhou o respeitável público: não há, aliás, maneira mais fácil de empulhar do que com fotografias e cifras. No caso de uma realização hidrelétrica há várias cifras em jogo com significações aparentemente idênticas. Uma delas é a que exprime a potên­cia total explorável de uma determinada cachoeira: há desde o início um total que a natureza oferece antes do primeiro parafuso colocado por mão de homem. Seja 450 000 kw essa pri­meira cifra. A última cifra a figurar em qualquer programa de utilização e distribuição de energia será essa capacidade primeira natural tornada finalmente capacidade última realizada.

Antes disso podem ser programadas instalações progressivas e parciais. Naquela data trabalhava-se para instalar em Três Marias um alternador de 63 000 kw, e era duvidosa a terminação dessa parte da obra por cau­sa da tirania que a Meta-Principal exer­cia sobre todas as demais. O locutor, adestrado, perguntou então ao Presidente:

— Presidente, qual é o potencial total de Três Marias?

— 450 000 kilowatt!.

— E quando estará terminado?

— Impreterivelmente em 31 de dezembro deste ano.

No dia seguinte, na minha coluna eu escrevi o artigo em que desde o tí­tulo, dizia: O PRESIDENTE MENTIU, e no qual entrava em explicações téc­nicas como as que aqui esbocei. No outro dia os jornais publicavam um ar­tigo contra G. C. parecido com o que anda sendo hoje difundido pela Con­ferência dos Religiosos do Brasil por todas as casas religiosas. Sim, a mesma página inteira do “Jornal do Brasil”, que qualquer pessoa de bom senso ima­ginava ter envergonhado seus infelizes autores, ao contrário dessa suposição, parece tê-los enchido de glória, porque continuam a difundi-la como quem es­tá muito satisfeito com o que escreveu.

Ora, a coluna lançada contra G. C. naquele tempo era igualmente caluniosa, injuriosa, e até arrematava, se não me falha a memória, com refe­rências à honestidade profissional do engenheiro que nada empreitou em ürnsília. Passam-se os meses. Quase no fim do ano estava a terminar meu al­moço quando o telefone chamou-me. Era uma voz feminina, secretária, eficiente, que me transmitia o desejo do (Ir. X se entrevistar comigo. Marquei a hora no Centro Dom Vital onde duran­te quinze anos fiz plantão às tardes pa­ra todos que desejavam conhecer uma pista do Reino de Deus. Que me que­reria o dr. X cujo nome trazia-me res­sonâncias de prestígios. As quatro e cinco bateu-me à porta de meu minúsculo e saudoso escritório.

— Entre.

Entrou um cavalheiro de meia idade bem vestido, e visivelmente habituado à afabilidade e ao destaque. Relanceou um rápido olhar com que mediu meu mundo, e instalou-se à von­tade na cadeira que lhe oferecia. Num silêncio de alguns segundos entreolha-mo-nos e eu senti que meu interlocutor desejava contar com minha simpatia. Encorajei-o com um gesto e ele, pau­sadamente, pronunciou: — Vim aqui para lhe pedir perdão.

Dizia isto com firmeza e sem per­der o ar de comando e importância que lhe assentava bem na cabeça gri­salha e leonina. Depois de um silêncio em que hesitou um pouco, explicou-se:

— O Sr. se lembra do artigo que escreveu sobre Três Marias depois do programa de Tv do Presidente?

Lembrei-me, e tomado pelo gosto da polêmica começava a explicar minha argumentação, mas o dr. X estendeu a mão espalmada, num gesto fatigado:

— Pelo amor de Deus! eu estou cansado de saber que o Sr. tem razão.

— Então não entendo…

— Fui eu que escrevi o artigo do dia seguinte, e é isto que me atormen­ta a consciência há quase um ano. Não o conheço mas set que é um homem honesto. Devo, todavia, dizer-lhe que as injúrias pessoais das últimas linhas não foram escritas por mim. As outras fo­ram, e é por isto que estou aqui.

Deteve-se. Vi que era sincero e que lhe doía ter escrito contra a consciência e que até seu natural porte fidalgo atestava o esforço que fizer para essa separação, mas…

Voltei-me para a janela e vendo que ele acompanhava meu olhar estendi a mão para a gente que passava lá em baixo. O povo. O público. E, então, balbuciei: — Meu caro senhor, nós ambos somos atados, somos ambos ho­mens públicos e nos devemos àqueles desconhecidos. O perdão é Deus que dá; mas a satisfação também não sou eu que a exijo — são eles. A eles nos devemos.

Vi que empalidecia. E levantando-se respondeu: — Isto eu não posso fazer. Está acima de minhas forças. Agradeço-lhe a acolhida e espero não merecer o seu desprezo.

O leitor estará perguntando por que não publiquei eu no dia seguinte tão precioso desmentido. Pare­ce-me claro, leitor, que eu não tinha o direito de completar o ato moral do dr. X. Além disso, se o fizesse, tudo indica que os prestígios do cargo pre­valeceriam, e que o meu adversário simplesmente me desmentiria.

Quando a porta feichou-se sobre as imponentes espáduas ligeiramente curvadas, fiz-lhe para o que desse e viesse um sinal da cruz. E rezei três Ave-Marias paira que a Santíssima Vir­gem nos desse, a nós ambos, a cora­gem de sempre defender a verdade.

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