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A “experiência” do Chile



Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 08–11–1973


ATÉ trasanteontem eu me inclinava a pensar, depois do vistoso fracasso do socialismo no Chile, que não existiria em toda a América Latina, quiçá no mundo, mais nenhum escritor capaz de vir a público defender ainda a sesquicentenária esperança social malograda em todas as suas experiências com uma regularidade de relógio suíço. A burrice das experiências se impõe e se amontoa numa fundamental experiência que se tornou historicamente incontornável. O Chile voltou a demonstrar o teorema de Pitágoras sobre hipotenusa e catetos do triângulo retângulo. Repetiu a demonstração do Brasil de Goulart, de Cuba, da China e da Rússia. Escrevi eu um artigo com este título: "Será Preciso Mais?" E com certa incorrigível candura e confiança nos gloriosos atributos do homem inclinava-me na almofada desta esperança: não!, ninguém quererá se apresentar tão incapaz de corrigir-se, ou capaz de se deixar enganar tão indefinidamente. Além disso, a famosa generosidade socialista, pela qual os adeptos da ideologia poderiam ser idiotas mas mereciam respeito por serem defensores dos pobres contra os ricos, essa ilusão azul-claro desbotou-se definitivamente, e tornou-se tão derrisória que já hesitamos em decidir qual dos dois enganados é hoje o mais ridículo: o que crê na força histórica do socialismo e em sua praticabilidade, ou o que ainda crê que o socialismo é movido pelos defensores dos pobres, e combatido pelos defensores dos ricos.


ORA, estava eu a imaginar que o caso do Chile tivesse trazido o tiro de misericórdia nas duas grandes tolices agonizantes, quando ouvi, num salão de barbeiro, um homem de cor e meia-idade virar-se para o outro que também esperava e perguntar-lhe:

— Você leu o artigo de Tristão de Athayde?

— Não. Aliás, não sou leitor assíduo. Lembro-me que ele foi um dos que se entusiasmou com a eleição de Allende. Deve estar abatido com o desastrado governo do comunista.

— Então leia, e você verá o inacreditável.

— Você não vai me dizer que ele ainda acredita no comunismo? E como é então que explica a inflação de 400% e as panelas vazias?

— Pela Guerra da Rosa Branca de York contra a rosa vermelha de Lancaster.

— Hein? Hein? Como? Como?


Terminara uma barba, e o oficial oferecia o lugar ao cavalheiro de cor e meia-idade, que ainda voltou-se uma vez para o interlocutor, dizendo-lhe: "Leia! Leia!". E assentou-se, já esquecido do Chile e da Guerra das Rosas para gozar o minuto de relax paradoxalmente oferecido pelo conúbio da espuma de sabão e da navalha afiada.


* * *


CORRI à banca e comprei o "Jornal do Brasil". Lá estava efetivamente o inacreditável. O Professor Alceu, com a absolvição literária do Acadêmico Tristão de Athayde, realmente começa pela Guerra das Rosas, mas volta ao Chile para dizer simplesmente o seguinte: "Em nosso plano continental estava mesmo reunida em Washington uma comissão da OEA encarregada de estudar uma nova organização pan-americana (...). Foi precisamente nesse instante que o golpe militar chileno veio esmagar implacavelmente A MAIS PROMISSORA EXPERIÊNCIA DE UMA EFETIVA PROMOÇÃO SOCIAL DAS CLASSES POPULARES POR MÉTODOS NÃO-VIOLENTOS E DENTRO DA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL."


AÍ ESTA, leitor, o inacreditável. E mais adiante, depois de dizer que se trata mais uma vez de uma guerra dos ricos contra os pobres o Professor Alceu Amoroso Lima se ultrapassa e diz: "O CHILE SE TINHA TORNADO COM ALLENDE O PALCO DE UMA EXPERIÊNCIA SOCIAL QUE O MUNDO INTEIRO ACOMPANHAVA COM O MAIOR INTERESSE."


NÃO perderei meu tempo em lembrar ao Professor Alceu A. Lima que seu entusiasmo pela experiência de Allende andou ao arrepio de todos os ensinamentos e advertências da Igreja durante mais de século e meio, porque já observei que Tristão de Athayde, nessas matérias, já se desligou há alguns anos dos critérios e dos ensinamentos da Igreja. Mas tentarei, sem muita esperança, obter do conhecido acadêmico um esforço de raciocínio. Não digo de memória, porque sei que ainda a possui excelente; mas digo e repito raciocínio porque isto que sempre faltou e cada dia falta mais nos textos publicados no "Jornal do Brasil". Tristão de Athayde lembra-se da Guerra das Rosas, possui 30.000 volumes e é capaz de tê-los lido: mas não foi capaz de perceber o ridículo infinito do elogio que faz da "experiência" do pobre Allende, que, em vez de se contentar com tolices escritas em colunas literárias, teve a audácia de fazer "experiências" com as panelas do povo que em má hora permitiu a posse de um presidente comunista. A "experiência" russa que produziu dez anos de fome e cerca de 100 milhões de vítimas também está aí na memória de todos. Agora, quando o pobre Chile caminhava a largos passos para uma fome nunca vista, e o mundo inteiro via com real interesse, e variado sentimento, o naufrágio de um povo na experiência homicida iniciada pelo criminoso líder democrata-cristão Eduardo Frey, chega-nos o Dr. Alceu ofegante, aflito, porque o espetáculo, ou a "experiência", corno diz, foi suspensa por uma junta militar que cumpriu o seu dever. Sentindo que não posso contar com a compreensão do Professor Alceu em termos de doutrina católica, e ainda menos em termos de bom senso político e econômico, concluo que realmente não posso contar com sua compreensão em plano algum. Desisto. E deixo ao leitor esta pergunta ansiosa: o que é que falta afinal na constituição mental do Professor Alceu?


E volto ao sensato cidadão que no salão de barbeiro, antes de se entregar aos cuidados do Fígaro, ainda repetiu: INACREDITÁVEL.

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