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A Vida Religiosa I


Gustavo Corção

“O Globo” – 01/08/1974


Li nos jornais a notícia da reunião de centenas de religiosos, sob os auspícios da Conferência dos Religiosos, e logo me alarmei na previsão dos disparates que jorrarão para tristeza e vergonha dos que permanecem católicos e, principalmente, dos religiosos que permanecem verdadeiramente fiéis a seus votos. Já me chegam recortes e opúsculos previstos, mas, antes de me espalhar nos comentários dessa matéria, quero hoje responder a uma questão central que foi brutalmente lançada pelo conferencista de uma das sessões: “A vida religiosa” – disse o conferencista – “não tem apoio nas Sagradas Escrituras”.

Ora, essa afirmação é inexata e leviana. Em muitos pontos poderíamos assinalar o apoio negado, mas contentemo-nos, no momento, com o magno texto em que Santo Tomás e seus discípulos tão abundantemente se estribaram. Respondendo ao moço que lhe perguntou o que deveria fazer para ser perfeito, Nosso Senhor respondeu: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuis, distribui o preço pelos pobres e terás um tesouro nos céus; depois vem e segue-me.” O moço recuou e voltou triste, porque era muito rico. Mas não nos precipitemos a concluir que desta sorte se recusou ao preceito geral e irrecusável sem recusa mortal de Deus: o de procurar sempre a maior perfeição do amor de Deus. Santo Tomás ensina IIª IIªe a. 3 ad primum que o moço se intimidou diante dos meios aconselhados por Jesus, mas nada no texto prova que, com a recusa dos meios, tenha recusado os fins. Eis o texto de Santo Tomás: “Nessas palavras do Senhor é preciso distinguir o que traça o caminho a seguir para chegar à perfeição, a saber: “Vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres” e aquilo que concerne a essência da perfeição: “Segue-me.” A esse propósito São Jerônimo escreve: “é por não bastar tudo deixar que Pedro acrescenta aquilo em que consiste a perfeição: “nós te seguimos”. (…) Vê-se pois nos termos deste texto que os conselhos têm um caráter de meio.”

No seu tratado sobre a santificação dos sacerdotes. De sanctificatione sacerdotum, ed. Marietti, p. 85, Garrigou Lagrange volta a insistir nessa idéia de que a perfeição não reside no conselho de pobreza, e cita Santo Tomás na IIª IIªe a. 6 ad primum: “A perfeição da vida cristã, como já vimos, não consiste essencialmente na pobreza voluntária, que é apenas um meio de atingir a perfeição. Não se deve pois imaginar que a perfeição cresça à medida que a pobreza se torne maior. A soberana perfeição é compatível com a opulência.”

A prática dos três conselhos evangélicos, pobreza, castidade e obediência, não é obrigatória para a procura da perfeição sempre maior, que é preceptiva. Mas o mesmo Garrigou Lagrange nos ensina em Les Trois Ages de la Vie Interieure, Tome I, p. 282 e seguintes, que é difícil a subida da perfeição, sem o “espírito dos conselhos”, i. é, sem o espírito de desprendimento. Ora, esse espírito dificilmente se adquire sem a prática efetiva dos conselhos, coisa que constitui a regra do estado religioso para o qual Jesus chamou o moço rico e também para o qual S. Paulo convida quando diz que não casar é melhor do que casar. É portanto errônea e leviana a frase eructada na reunião dos religiosos no colégio São Bento. Pronunciada por um religioso ela se reveste de uma especial repugnância.

Além daquelas especulações teológicas que com firmeza nos levaram a tão clara e sabida conclusão, todos nós – refiro-me aos católicos – sabemos que, desde os primeiros anos da vida da Igreja, a vida religiosa, instituída, procurada para tornar mais seguro o caminho da perfeição, tornou-se causa exemplar, princípio de animação, modelo oferecido ao povo de Deus disperso no mundo. Pode-se até dizer que, ao longo dos vinte séculos percorridos, o maior ou menor esplendor da Igreja correu sempre paralelo ao maior ou menor esplendor do monaquismo. Durante 15 anos ensinamos estas coisas certas e guardadas no coração da Igreja. No Centro Dom Vital ensinamos que a vida religiosa é a via excelente de seguir o Cristo, e que as casas religiosas são o sal purificador que, dentro da comunhão dos santos, compensavam, completavam nossos pecados e nossas deficiências. As religiosas dos mosteiros beneditinos e nos carmelos eram vistas por nós como as melhores servidoras do mundo sendo as melhores servidoras de Deus. Ajudavam-nos mais com suas orações e seus silêncios do que pretendem hoje as virgens ou ex-virgens acometidas de uma loquacidade idiota e de um ativismo demente.

A última esperança que podemos ter nessa reunião é a de que venham descobrir o que perderam: o que desprezaram, e a falsidade da burlesca proposta com que nos tentam enganar depois de se terem enganado a si mesmos. Por mim confesso que não abrigo grandes esperanças. Depois do mal que fizeram, o restabelecimento só virá através de dores espantosas.

Ao caro amigo beneditino que sacudia seu escapulário a perguntar se “aquilo” era então uma pataquada, envio aqui esta palavra de velho amigo. Agarremos-no àquele “e segue-me” porque estamos na hora penúltima da ascensão do Calvário. Imitemos Jesus nos últimos passos de nossa vida e de sua vida. Sigamos o rastro de Sangue. E imitemos chorando “Aquela que chora” na Sallete, e em tantos outros pontos deste mundo tão seu, verte lágrimas diante do medonho espetáculo que por toda a parte oferecem os sacerdotes, os bispos e cardeais, e principalmente os “religiosos” que vomitam o que prometeram num dia, cuja marca no céu parece ter-se deslocado e caído no abismo.

Mais de um Padre Religioso nestes dias visitou-me para trazer a boa notícia de que são muitos os que choram. Bem-aventurados, porque serão consolados.

Amice, ploremus et oremus invicem.

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